ALGUMAS NOTAS
Despretensiosos rascunhos, observações e atrevimentos literários cheios de segundas intenções.
QUARENTA
Hoje eu acordei assim: com sintomas de quarenta.
Não sei bem se por culpa da noite mal dormida, da pressa do calendário gregoriano ou dos shots de tequila que ontem eu não bebi porque não bebo shots de tequila. Difícil dizer.
A verdade é que, mal abri os olhos, fui atingido por uma ânsia quase incontinente de comprar, imaginem só, um conversível. Queria porque queria um descapotável. Cheguei a sofrer alucinações em que via tremular ao vento os meus vinte e sete fios de cabelos. (Droga, agora vinte e seis).
Para minha sorte, estavam comigo o ciático e a lombar, que nem precisaram de grande esforço para me manter imóvel. Tentaram me convencer a trocar de ideia: Que tal tingir o cabelo de acaju? Tenho sérias dúvidas, respondi. Das outras vezes não ficou bom.
Levantei-me para sacudir todas aquelas horas de cima de mim, mas a labirintite me fez um convite tão sedutor para voltar à cama que, tonto, cedi. Dediquei-me então a refletir sobre como tudo era melhor antigamente. Bons tempos aqueles que vêm antes do depois, pensei. Quis compartilhar esse aforismo tão maduro com alguém. Mas quem entenderia? Já não fazem mais saudosistas como antigamente.
Tentei, sem sucesso, voltar a dormir. Queria evitar que essa – digamos – “condição momentânea” me fizesse cometer qualquer tipo de transgressão dos protocolos sociais. Sei lá, já pensaram se, por acaso, eu começasse, nesta altura do campeonato, a publicar selfies no espelho? Longe de mim.
Agora, se me dão licença, tenho que ir: estou mesmo precisando de uns shots de tequila.
A ÚLTIMA LIVE
Enclausurado na cabeça de um sujeito enclausurado na quarentena, o Otimismo resolveu fazer o que parece ser o mais correto nesses tempos difíceis: uma live. Como tinha certeza absoluta de que tudo ia correr bem, o Otimismo decidiu arriscar: convidou o Pessimismo para ser o entrevistado da primeiríssima edição. Apesar de ter ficado bastante reticente com a ideia — “Vai acabar em merda” — , o Pessimismo acabou cedendo.
— Olá! Bem-vindos à primeira live de uma longa série! Para começar com o pé direito, tenho o prazer de receber ninguém menos do que ele, o Pessimismo. Que melhor convidado eu poderia ter?
— Eu cheguei a enviar uma lista para você, lembra?
— Hahaha! Olha aí, o Pessimismo sempre espirituoso. Bom dia, amigo!
— Bom… Não sei não. Aqui anda meio nublado. Parece que vai chover. Deve chover, com certeza vai chover.
— Ok, ok . Mas não viemos aqui falar deste tempo e sim de outros: esses tempos excepcionais que estamos vivendo, não é mesmo?
— “Excepcionais” no sentido de “maravilhosos” ou de “anormais”?
— Como preferir.
— Anormais, prefiro anormais.
— Tudo bem, eu até concordo que esse é mesmo um momento difícil. Mas você certamente deve concordar que a humanidade sairá melhor disso tudo, não é?
— Não, não é.
— Como? Você não acredita que, depois de perceber que o sistema inteiro entrou em colapso apenas porque as pessoas passaram a consumir nada mais do que o essencial, a humanidade vai mudar o comportamento?
— Alô, alô? Acho que minha conexão falhou. Só consegui entender “colapso”, “consumir” e “humanidade”.
— Não, não! Veja bem, as pessoas agora só têm comprado o mínimo que precisam e isso fez um modelo inteiro de sociedade ruir. Ficou evidente que elas têm de repensar a forma como consomem. Isso vai mudar a humanidade para melhor! Certamente!
— Você, certamente, não viu o vídeo daqueles seres humanos entrando num shopping reaberto em Blumenau, todos mascarados, caminhando por um tapete vermelho, ao som de aplausos de funcionários e de Kenny G num saxofone…
— Não era Kenny G.
— Não? Desculpa, tenho a péssima mania de enxergar sempre a pior versão de tudo. Mas o resto da descrição estava correta, não estava?
— Ok, admito, não são cenas muito promissoras. Mas, vá lá, o ser humano é muito mais complexo do que aquilo. O sentido de coletividade e o sentimento de empatia devem fazer renascer uma nova sociedade. A humanidade vai se dar conta de que é, na verdade, um organismo único.
— E o papel higiênico?
— Quê? Papel o quê? Você só pode estar brincando. Eu aqui falando de coisa séria, de questões profundas, e você me vem com papel higiênico…
— Eu nunca falei tão sério. Pense comigo: não há nada mais íntimo do ser humano do que o papel higiênico. Nem outro ser humano, nem o supositório. A relação entre o papel higiênico e os homens e as mulheres é o reflexo mais fiel da vulnerabilidade do ser. Ali não há subterfúgios: é a cumplicidade na sua mais pura expressão. É um fragmento da própria humanidade de cada um que fica preso naquele pedaço de papel, às vezes de folha dupla.
— É, pensando assim…
— E você se lembra do que aconteceu no primeiro sinal de ruptura da normalidade? As pessoas se transformaram numa espécie de zumbis, atacando as prateleiras dos supermercados para estocar papel higiênico apenas para elas mesmas. Aquilo não era papel higiênico, Otimismo. Era o restinho de humanidade que ainda havia no mundo. Mas que, em poucas horas, acabou. Acabou.
— É… Tenho que concordar que… Quero dizer, acho que… não sei. Talvez… Talvez seja melhor encerrar essa live. Essa e as outras. Desculpem. Adeus.
— Alô? Alô? Otimismo? Desligou. Eu falei que ia acabar em merda.
MEIO-TERMO
Entrou pela porta automática, retirou uma ficha com um número mal impresso e sentou-se numa cadeira de almofada azul, descosturada no lado esquerdo. Era a primeira vez que pisava numa agência de empregos. Esperou minutos disfarçados de horas até que seu número finalmente aparecesse, vermelho, no letreiro eletrônico. Levantou-se e caminhou até a mesa tropeçando em constrangimentos. Nome e sobrenome, por favor — pediu mecanicamente a funcionária sem sequer encará-lo. O último nome é Termo, o primeiro é Meio, respondeu. A mulher parou de preencher os papéis e apontou os olhos para o único espaço remanescente entre os seus óculos e as suas sobrancelhas. Senhor Meio-Termo, é um prazer conhecê-lo, já esperávamos a sua visita.
O Meio-Termo não entendia bem. Estava confuso. A funcionária tratou de esclarecer. Não se assuste, sabíamos que há muito andava por aí desocupado à procura de um lugar para se encaixar porque todos os seus discípulos chegaram aqui antes. Era uma questão de tempo até que nos viesse procurar, explicou-lhe. Ele varreu com os olhos a repartição e fez uma confissão: Isto aqui é a minha última esperança, dona. A funcionária respirou fundo e tirou do rosto os óculos antes de atirar-lhe no colo a única verdade possível. Olha, senhor, eu sinto muito, mas isto não vai ser nada simples. Ao contrário: já não há qualquer interesse em perfis como o seu.
Ela então olhou ao redor, inclinou-se alguns graus na direção dele e, apontando sem qualquer pudor para os presentes, analisou quase que um a um. Olha, senhor Meio-Termo, não sei se reparou bem, mas todos aqui são um pedaço de si, e sofrem igualmente da mesma inutilidade imposta por estes tempos em que só se empregam os extremos, as pontas últimas, os mais opostos lados. E seguiu: Vê aqueles dois ali? São o Outono e a Primavera. Desocupados agora que só se admitem frio e calor. Ou é Inverno ou Verão. E tudo entre um e outro é nada. Inútil como aquela fila inteira ao fundo, que começa no número nove e conta até o setenta e nove. Vê? Estão aqui porque nada entre o oito e o oitenta tem mais qualquer serventia. Foram descartados como todos aqueles cinquenta tons ali sentados, que em seus dias até desfrutaram de bons empregos na indústria cinematográfica. Mas agora, senhor Meio-Termo, ou é preto ou é branco. Nada no meio. Só há céu e inferno, heróis e vilões, deuses e diabos. Tudo o que era espectro, nível, etapa, camada, grau, estágio, nuance é apenas deserto. Um vácuo que nos suga inevitavelmente para um dos lados. Não queria ser eu a dar-lhe a notícia, mas o Meio-Termo está morto. Profissionalmente, quero dizer.
O Meio-Termo disse nada. Levantou-se e, sem se despedir, fez o caminho de volta para a porta automática. Já não tropeçava em nada porque mal andava. No trajeto, não pensava em outra coisa para além das palavras que ouviu da senhora funcionária. Estava morto. Profissionalmente, mas morto. Abriu a porta de casa e seguiu direto para o banheiro, onde mantinha uma pequena farmácia por detrás do espelho. Pegou todos os comprimidos que lhe podiam caber nas mãos. Na cozinha, encheu tanto o copo que deixou a água transbordar. É isso. Se estava morto, deveria finalmente estar morto. Tentou levar a mão à boca, mas as cápsulas pareciam pesar dezenas de quilos cada. Não podia fazê-lo. Deitou os comprimidos à mesa e agachou-se para enxugar o chão molhado. O Meio-Termo não era dado a atitudes extremas.
GENTE QUE TEM MUITA CERTEZA
Acho que foi o Mark Twain quem disse a certa altura: “Quanto mais envelhecemos, mais nos espantamos com a colossal ignorância que conseguimos conter em nós sem que a nossa roupa rebente pelas costuras”. (Minto: sei que a frase é dele, claro. Acabei de transcrevê-la. Sugeri apenas suspeitar porque me parece mais intelectual largar uma citação assim, de forma meio displicente, quase despretensiosa. Peço desculpas. Sigamos.) Particularmente, eu me reconheço imensamente na hipótese do Twain. Não pela parte do envelhecimento, é bem óbvio: continuo jovem. (E cínico.) É sobretudo a nossa infinita capacidade de acumular ignorância ao longo dos anos que a mim soa familiar. Quanto mais eu leio, ou ouço, ou assisto, ou pesquiso (e nem os faço com qualquer frequência de se orgulhar), mais sinto crescer a bolha das coisas sobre as quais eu não sei nada. O tempo tem multiplicado desconhecimento dentro de mim tal como faz com gatos na casa de velhinhas solitárias.
Pois bem, é exatamente por reconhecer que meus botões vivem no limite da descostura que cultivo sentimentos tão contraditórios em relação a gente que tem muita certeza. É um dualismo até meio infantil, feito cabo de guerra. De um lado, uma admiração instantânea obriga-me a promover tais exemplares da nossa raça a um status quase sobre-humano. Vejo-os como se fossem uma espécie de heróis a exibir os seus superpoderes cognitivos e as suas sobrenaturais convicções. Mas, na outra ponta, é o desencantamento mais profundo que estica a corda. Uma desilusão que chega a transformar-se em pena quando me dou conta de que tanta confiança era nada mais do que apenas fé. Era crença, não ciência.
Mas esse sentimento de compaixão só consegue sobreviver enquanto permanecemos dentro das fronteiras da inocência, enquanto a tal certeza ainda é fruto (azedo, é verdade) da mais pura ingenuidade. Porque, estejamos alertas, muito mais perigosa do que a convicção pela fé é a convicção pela má-fé. Aquela certeza artificial, cenográfica, deliberadamente encenada (quase sempre por canastrões, o que é mais frustrante) para uma plateia de espelhos que farão eco apenas porque escolheram acreditar e não entender. Um exército de gente que “quanto menos sabe, mais certeza tem”, como disse também o Twain.
Eu, por isso, certifico-me de me alimentar diariamente com toneladas de desconfiança em relação a todo e qualquer convicto, sem exceção. Porque suspeito que super-heróis não existam. O que me deixa com apenas duas opções: ou o sujeito cheio de certezas é devoto de uma ideia (e portanto considera heresia qualquer argumento contrário) ou, pior, é o seu criador. Fabricador, para fazer melhor uso das palavras. É por isso também que prefiro abraçar-me fraternalmente à ignorância que cresce em mim como numa gestação perpétua, e sempre antes de qualquer embate tento considerar a possibilidade de eu estar errado. É exercício difícil nesses tempos. Mas agarro-me numa frase que li outro dia: “A consciência de saber mais conduz-me à consciência de saber pouco”. Acho que foi o Saramago que a escreveu.
Acho.