A Última Live
Enclausurado na cabeça de um sujeito enclausurado na quarentena, o Otimismo resolveu fazer o que parece ser o mais correto nesses tempos difíceis: uma live. Como tinha certeza absoluta de que tudo ia correr bem, o Otimismo decidiu arriscar, e convidou o Pessimismo para ser o entrevistado da primeiríssima edição. Apesar de ter ficado bastante reticente com a ideia — “Vai dar merda” — , o Pessimismo acabou cedendo.
— Olá! Bem-vindos à primeira live de uma longa série! Para começar com o pé direito, tenho o prazer de receber ninguém menos do que ele, o Pessimismo. Que melhor convidado eu poderia ter?
— Eu cheguei a fazer uma lista para você, lembra?
— Hahaha! Esse é o Pessimismo, sempre espirituoso. Bom dia, Pessimismo!
— Bom dia… Quer dizer, não sei não, aqui anda meio nublado. Parece que vai chover. É, deve chover, com certeza vai chover.
— É… Ok. Mas não viemos aqui falar do tempo, e sim desses tempos excepcionais que estamos vivendo, não é mesmo?
— “Excepcionais” no sentido de “maravilhosos” ou de “anormais”?
— Como você preferir…
— Anormais, prefiro anormais.
— Tudo bem, eu até concordo que esse é mesmo um momento difícil. Mas você certamente deve concordar que a humanidade sairá melhor disso tudo, não é?
— Não, não é.
— Como? Você não acredita que, depois de perceber que o sistema inteiro entrou em colapso apenas porque as pessoas passaram a consumir nada mais do que o essencial, a humanidade vai mudar o comportamento?
— Alô, alô? Acho que minha conexão falhou. Só consegui entender “colapso”, “consumir” e “humanidade”.
— Não, não! Veja bem, as pessoas agora só têm comprado o mínimo que precisam e isso fez um modelo inteiro de sociedade ruir. Ficou evidente que elas têm de repensar a forma como consomem. Isso vai mudar a humanidade para melhor! Certamente!
— Você, certamente, não viu o vídeo daqueles seres humanos entrando num shopping reaberto em Blumenau, todos mascarados, caminhando por um tapete vermelho, ao som de aplausos de funcionários e de Kenny G num saxofone…
— Sim, eu vi. E não era Kenny G.
— Não? Desculpa, tenho a péssima mania de enxergar sempre a pior versão de tudo. Mas o resto da descrição estava correta, não estava?
— Ok, admito, não são cenas muito promissoras. Mas, vá lá, o ser humano é muito mais complexo do que aquilo. O sentido de coletividade e o sentimento de empatia devem fazer renascer uma nova sociedade. A humanidade vai se dar conta de que é, na verdade, um organismo único.
— E o papel higiênico?
— Quê? Papel o quê? Você só pode estar brincando. Eu aqui falando de coisa séria, de questões profundas, e você me vem com papel higiênico…
— Eu nunca falei tão sério. Pense comigo: não há nada mais íntimo do ser humano do que o papel higiênico. Nem outro ser humano, nem o supositório. A relação entre o papel higiênico e os homens e as mulheres é o reflexo mais fiel da vulnerabilidade do ser. Ali não há subterfúgios: é a cumplicidade na sua mais pura expressão. É um fragmento da própria humanidade de cada um que fica preso naquele pedaço de papel, às vezes de folha dupla.
— É, pensando assim…
— E você se lembra do que aconteceu no primeiro sinal de ruptura da normalidade? As pessoas se transformaram numa espécie de zumbis, atacando as prateleiras dos supermercados para estocar papel higiênico apenas para elas mesmas. Aquilo não era papel higiênico, Otimismo. Era o restinho de humanidade que ainda havia no mundo. Mas que, em poucas horas, acabou. Acabou.
— É… Tenho que concordar que… Quero dizer, acho que… não sei. Talvez… Talvez seja melhor encerrar essa live. Essa e as outras. Desculpem. Adeus.
— Alô? Alô? Otimismo? Desligou. Eu falei que ia dar merda.
Meio-Termo
Entrou pela porta automática, retirou uma ficha com um número mal impresso e sentou-se numa cadeira de almofada azul, descosturada no lado esquerdo. Era a primeira vez que pisava numa agência de empregos. Esperou minutos disfarçados de horas até que seu número finalmente aparecesse, vermelho, no letreiro eletrônico. Levantou-se e caminhou até a mesa tropeçando em constrangimentos. Nome e sobrenome, por favor — pediu mecanicamente a funcionária sem sequer encará-lo. O último nome é Termo, o primeiro é Meio, respondeu. A mulher parou de preencher os papéis e apontou os olhos para o único espaço remanescente entre os seus óculos e as suas sobrancelhas. Senhor Meio-Termo, é um prazer conhecê-lo, já esperávamos a sua visita.
O Meio-Termo não entendia bem. Estava confuso. A funcionária tratou de esclarecer. Não se assuste, sabíamos que há muito andava por aí desocupado à procura de um lugar para se encaixar porque todos os seus discípulos chegaram aqui antes. Era uma questão de tempo até que nos viesse procurar, explicou-lhe. Ele varreu com os olhos a repartição e fez uma confissão: Isto aqui é a minha última esperança, dona. A funcionária respirou fundo e tirou do rosto os óculos antes de atirar-lhe no colo a única verdade possível. Olha, senhor, eu sinto muito, mas isto não vai ser nada simples. Ao contrário: já não há qualquer interesse em perfis como o seu.
Ela então olhou ao redor, inclinou-se alguns graus na direção dele e, apontando sem qualquer pudor para os presentes, analisou quase que um a um. Olha, senhor Meio-Termo, não sei se reparou bem, mas todos aqui são um pedaço de si, e sofrem igualmente da mesma inutilidade imposta por estes tempos em que só se empregam os extremos, as pontas últimas, os mais opostos lados. E seguiu: Vê aqueles dois ali? São o Outono e a Primavera. Desocupados agora que só se admitem frio e calor. Ou é Inverno ou Verão. E tudo entre um e outro é nada. Inútil como aquela fila inteira ao fundo, que começa no número nove e conta até o setenta e nove. Vê? Estão aqui porque nada entre o oito e o oitenta tem mais qualquer serventia. Foram descartados como todos aqueles cinquenta tons ali sentados, que em seus dias até desfrutaram de bons empregos na indústria cinematográfica. Mas agora, senhor Meio-Termo, ou é preto ou é branco. Nada no meio. Só há céu e inferno, heróis e vilões, deuses e diabos. Tudo o que era espectro, nível, etapa, camada, grau, estágio, nuance é apenas deserto. Um vácuo que nos suga inevitavelmente para um dos lados. Não queria ser eu a dar-lhe a notícia, mas o Meio-Termo está morto. Profissionalmente, quero dizer.
O Meio-Termo disse nada. Levantou-se e, sem se despedir, fez o caminho de volta para a porta automática. Já não tropeçava em nada porque mal andava. No trajeto, não pensava em outra coisa para além das palavras que ouviu da senhora funcionária. Estava morto. Profissionalmente, mas morto. Abriu a porta de casa e seguiu direto para o banheiro, onde mantinha uma pequena farmácia por detrás do espelho. Pegou todos os comprimidos que lhe podiam caber nas mãos. Na cozinha, encheu tanto o copo que deixou a água transbordar. É isso. Se estava morto, deveria finalmente estar morto. Tentou levar a mão à boca, mas as cápsulas pareciam pesar dezenas de quilos cada. Não podia fazê-lo. Deitou os comprimidos à mesa e agachou-se para enxugar o chão molhado. O Meio-Termo não era dado a atitudes extremas.