COPYWRITER & CREATIVE DIRECTOR
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50/cinquenta

50/cinquenta

Tudo o que tenho é uma câmera e uma lente 50mm.
Tudo o que (acho que) sei fazer é escrever.
Então, para cada milímetro, uma palavra.
50 milímetros, cinquenta palavras.


O painel na entrada da fábrica orgulhava-se: 1.497 dias sem acidentes. No fim do expediente, o velho funcionário subiu a escada para corrigi-lo: 1.498. Em casa, foi recebido pelo filho desesperadamente convocado da capital.
– Pai, a fábrica faliu há anos, lembra?
– Claro. Foi o último acidente que registrei.


“Ó, cidadãs e cidadãos desta Coimbra, hei deixado minha marca na história! Daqui, desta altura em que me ponho, com sentimento de grande alívio e orgulho assumido, reitero: hei deixado minha marca na história! Ela agora escorre, branca, como franja grisalha, pela testa deste distinto senhor. Quem foi ele mesmo?”


Na aula inaugural, entreolharam-se. Ambas inseguras, tímidas, minúsculas. Mas antes do primeiro dia terminar, marcaram um encontro vocálico. Não demorou muito para tornarem-se um casal. Formam uma bela sílaba, diziam. A rotina, entretanto, provocou um hiato. Foi quando uma delas arriscou: “E se tentássemos um tritongo?”. Era o ponto final.


— É tarde, já vou.
— Mas, se fores, não é mais tarde.
— Como?
— Se a tarde for embora, já deixa de ser tarde.
— Se eu não for, não fica tarde nunca.
— Ou fica tarde sempre.
— Quê?
— Se nunca fores embora, é eternamente tarde.
— Está tarde demais para isso.
— Não se ficares…



Foi através de carta que ele fez a sua reserva. Só se comunicava assim: com tinta derramada em textura de papel e letra desenhada à mão. No dia marcado, chegou, instalou-se e, pouco antes de deitar-se, abandonou em cima da escrivaninha outra carta. A última. Só se comunicava assim.



A humanidade não evolui linearmente. Como se imitasse o mar, antes de cada avanço, ela, tímida, recua. Apenas para, em seguida, arriscar-se mais e transbordar limites até então intocados. A maré retrocedeu ferozmente. Revelou um fundo seco e arenoso jamais visto. Mas isso é exatamente o que antecede um tsunami.



Assim fomos condenadas a viver. Como num baile interminável em que ninguém nunca recebe o convite para dançar. Como dois exércitos armados, tensos, na iminência eterna do combate fatal. Mas, não se engane: quando o vento sopra, mesmo que num sussurro frágil, lá no alto, todo toque é só carícia.



O inverno estava atrasado naquele ano. Em protesto contra o rotineiro desperdício, a última folha do outono recusava-se a também deixar-se cair. Um oficial do Departamento de Estações foi convocado para executar a intimação: “Neste caso, senhora, preciso da sua assinatura aqui, aqui, aqui, aqui e... aqui”. Sem despedidas, pulou.


Do lado de fora é onde está a vida, diziam-lhe. Do lado de fora, insistiam, estão as cores, os cheiros, as chances. Mas, ainda assim, ela nunca punha os pés do lado de fora. Porque sempre soube que a única saída era para o lado de dentro de si mesma.



A reunião do Sindicato dos Animais de Carrossel estendia-se por horas. Como o impasse sobre a deflagração ou não de uma greve persistia, o presidente suspendeu a sessão. O segundo secretário da mesa cochichou, abafando o microfone: “Tenho a sensação de que rodamos, rodamos e não saímos do lugar”.


— Eu sinto arrepios quando vejo gente de máscara no Carnaval.

— Por quê?

— Porque é impossível descobrir quem realmente está por trás dela.

— É, faz sentido.

— Então você também tem medo?

— Até tenho. Mas só de gente que usa máscara entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Sábado de Zé Pereira.



Quando acordei, estava tudo assim: quebrado, rompido, despedaçado. Devem ser as lentes dos meus óculos, pensei.
Só pode ser. Aí lembrei-me de um detalhe: não uso óculos.
Corri para enxaguar o rosto. Não adiantou.
Só então fui atingido pela verdade insuportável.
Há mesmo algo estilhaçado, fragmentado, partido.
É o mundo.


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“Senhoras e senhores, estamos passando por uma forte turbulência. Peço a todos que não abandonem os seus lugares por hipótese alguma, usem as máscaras sempre que necessário e, se acreditarem em alguma coisa, rezem: estamos sem comandante.” Disseram num sincronismo impossível o comissário de bordo e o âncora do telejornal.


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Nas tardes dos dias de primavera, a luz invade a janela e toca o altar. Mas ela só invade porque há janela e só toca porque há altar. Não houvesse janela, nem altar, ainda assim haveria luz, desobrigada a invadir janelas e tocar altares nas tardes dos dias de primavera.


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Dizem que fotografia é instrumento de congelar instantes, armadilha para capturar tempo, máquina de aprisionar ponteiros em microssegundos quaisquer. Mas a verdade é que a vida sempre segue, invariavelmente. E o problema da metáfora é que ela tem força apenas poética, mas nenhum poder contra a irônica pontaria das gaivotas.


Durante anos, executou seu plano de vingança repetidamente em pensamento: o susto do reencontro, a paciência da tortura, o regozijo da despedida. Mas, sabia, nunca poderia colocá-lo em prática. Era apenas uma boneca de plástico. Tudo o que lhe restava era a ideia da vingança. E um lindo vestidinho bordado.